terça-feira, 28 de abril de 2009

Discurso show de Bola do Senador Cristovao Buarque na tribuna do senado sexta passada, vale a pena ler

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.)  Sr. Presidente e Senador Mão Santa, demorei muito, na minha história de leitor, para gostar de ler peças de teatro. Mas chego ao ponto  talvez seja a idade que facilite  que terminei adquirindo esse gosto. Estou vendo, Senador Paim, como estão parecidas as peças gregas, as peças trágicas de Shakespeare com os jornais brasileiros de hoje. A sensação que tenho, ao ler os jornais, é que estou lendo as tragédias especialmente gregas. Vou explicar por quê.
Quando a gente assiste a uma peça de teatro, dessas mais trágicas, o bom ator passa para nós a idéia de que está cumprindo um papel que preferiria que não acontecesse no final. Ele passa a sensação cada um deles  de que seria melhor que, no final, não houvesse a morte, as diversas formas como a tragédia se manifesta. Mas, apesar de ele passar a idéia de que não deseja aquele final, ele cumpre cada passo definido pelo dramaturgo para que o final seja trágico.
Estamos assim. Estamos hoje funcionando como se não quiséssemos que houvesse um final trágico, mas fazendo tudo aquilo que é preciso para que a tragédia aconteça. Vamos analisar quais são os setores. Comecemos por nós próprios.
Nós sabemos que hoje, diante de nós, por cima de nós, está uma quantidade de holofotes nos observando, uma transparência criada pela força da democracia que faz com que cada pequeno ou grande pecado cometido seja visto com a dimensão da gravidade que a mídia transmite.
Apesar disso, a gente continua fazendo gestos que nos levam a uma imagem negativa lá fora. Nós estamos fazendo isso. Às vezes, coisas simples, às vezes, coisas graves. Por exemplo, a ausência nossa... E eu quero deixar claro que quando eu digo nossa, eu estou me incluindo. Não há aqui ninguém melhor do que o outro. Nós somos aqui um Parlamento. Nossa ausência. A gente está vindo dois, três dias por semana aqui, salvo um ou outro. Mas mesmo com esse um ou outro que vem aqui, a gente não tem chance de votar, de debater, de analisar, de enfrentar. A gente faz um discurso, e cai no vazio, porque ninguém assiste e, os poucos que assistem, não respondem, não discutem, não confrontam, que é a finalidade de um parlamento.
Nós estamos cometendo uma forma de comportamento que leva, necessariamente, à descrença. E a descrença com o Congresso é uma tragédia para a democracia.
O próprio assunto, Senador Mão Santa, sobre o qual alguns já falaram hoje, das passagens para as famílias, eu quero dizer, em primeiro lugar, que nós, Senadores de Brasília, eu e os outros dois, a gente não deve receber passagem nenhuma para familiares. Nenhuma, nenhuma, nenhuma. Agora, os Parlamentares de outros Estados deviam ser obrigados a trazer suas famílias para viver em Brasília. Deviam receber, pelo menos, uma passagem por semestre para todos os seus familiares, da sua cidade para Brasília, como fazem as empresas quando transferem um executivo. E uma das falhas dessa tragédia que se anuncia é a mudança no comportamento nosso, dos Parlamentares, de um tempo passado em que as famílias vinham viver aqui e os Parlamentares ficavam o tempo todo aqui, com essa mania de hoje de vir e, toda semana, ir visitar a família lá fora, em sua casa.
Isso está nos afastando, entre nós Parlamentares, está afastando os Parlamentares não apenas das suas famílias, mas da possibilidade de exercermos o papel de Parlamentares, que é parlamentar, que é se encontrar, que é conviver, que é debater.
Nós parecemos hoje personagens de uma tragédia grega, fazendo aquilo que a gente não quer que leve a um desenlace trágico, mas fazendo mesmo assim, esperando que, no final, o público chore com aquilo que a gente representou. Nós não estamos trazendo aqui os grandes temas nacionais, não estamos debatendo a pauta do povo, salvo uma ou outra vez em que a gente fez, graças inclusive ao Senador Paim, as vigílias.
Mas, cadê as outras? Fizemos a dos aposentados, mas cadê a vigília para discutir a situação das crianças? Cadê a vigília para discutir a situação da infraestrutura? Cadê a vigília para discutir o próprio Congresso, numa noite inteira, todo mundo debatendo? Além disso, vamos lembrar bem, as nossas vigílias tinham cinco, seis pessoas aqui dentro. Nós estamos nos comportando como figurantes de uma tragédia que a gente não quer que aconteça, mas a gente cumpre o papel para isso. Mas não venham dizer que somos apenas nós os congressistas.
Vamos olhar o Poder Executivo. O Poder Executivo está-se comportando como se não desse atenção, como se quisesse evitar uma tragédia, mas faz tudo para que aconteça.
As medidas provisórias que paralisam o Congresso. As medidas provisórias que substituem os projetos dos próprios congressistas.
O excesso de publicidade do Governo para mostrar como se só o Executivo funcionasse neste País e nós fôssemos um apêndice secundário do processo democrático.
O Presidente da República, provavelmente sem querer, está sendo hoje um figurante de uma tragédia que se anuncia, que a gente caminha para acontecer, que é o descrédito nas instituições.
Mas não só o Poder Executivo, o Judiciário também. E eu não falo apenas do confronto entre dois juízes diante das televisões, ou pelo menos diante da TV Justiça. Não, eu falo mais grave que isso. Falo, por exemplo, que nós estamos, hoje, naquele choque entre juízes, analisando se foi ou não falta de decoro. E não analisando se tem ou não verdade por trás do que eles disseram.
Quando a gente fica na aparência, ao invés de ficar na substância, é porque a gente não está querendo enfrentar o problema. E se a gente não quer enfrentar o problema, a gente está-se comportando, cada um de nós, como figurantes de uma grande peça chamada História do Brasil, que pode terminar numa tragédia que a gente não quer que aconteça, mas que a gente faz tudo para que ela aconteça como a gente não quer.
E quando a Justiça se intromete no Poder Legislativo como tem feito sistematicamente? E quando a Justiça manda tirar as algemas dos ricos e fecha os olhas às algemas nos braços dos pobres? Como se algema não pudesse sujar os punhos de seda dos ricos, mas pudesse ser colocada nos punhos dos pobres que vão sem camisa para a frente da televisão.
A Justiça, quando faz isso, está colaborando para uma tragédia, a tragédia na descrença das instituições democráticas. Não estão querendo que aconteça o trágico, mas estão agindo para que ele, no final, aconteça.
Nós vimos três setores que estão fazendo isso.
Mas a mídia também. A mídia. Não por dizer o que diz, mas por limitar-se quase que apenas ao dizer o que diz. A mídia esqueceu os debates que a gente tem que fazer neste País, entre um país velho que tem que morrer e um novo que tem que surgir, o velho da destruição ecológica, o velho da concentração de renda, para surgir o novo, do desenvolvimento equilibrado social e ecologicamente com democracia. A gente não vê esse debate na mídia. Será que ninguém está falando isso? Ou é a mídia que se acostumou a uma única pauta, necessária, mas insuficiente, que é a pauta do escândalo.
Nós temos hoje uma relação que tem tudo a ver com o teatro, é uma relação sadomasoquista entre políticos e jornalistas. Hoje é uma relação sadomasoquista. E nós somos os masoquistas. E eles são os sádicos. Nós somos os masoquistas porque fazemos coisas que levam a mídia, corretamente, a denunciar, e, depois, nós sofremos com a denúncia que eles fazem. Mas o pior é que eles sentem prazer em denunciar as coisas que são denunciadas. Eu não vejo que a mídia diz: ¿Eu tenho que dizer essas coisas feias que estão acontecendo com tristeza e lamentando, porque era melhor que este Congresso fosse feito apenas de santos¿. Eu não vejo. A sensação que tenho é que há uma certa alegria em descobrir mais um crime, mais um pecado, mais um comportamento errado, e isso é característica dos sádicos. Nós somos os masoquistas. Nós estamos dando as armas para eles. A mídia não tem mentido, o que a mídia tem feito é esquecido o resto da verdade que acontece nesta Casa que defende a democracia. Vê-se que cada um de nós está fazendo a sua parte, Senador Mão Santa, para um desenlace negativo, trágico, mas a gente está fazendo cada um a sua parte, como os personagens das tragédias gregas ou das tragédias de Shakespeare: o autor age como se ele não quisesse que o final fosse aquela situação. Quer dizer, ele não deixa, não interrompe no meio, não muda o rumo traçado pelo dramaturgo. Nós estamos como se fôssemos os atores de uma grande peça inventada por alguém neste País ou neste mundo que é o destino do Brasil.
Vou mostrar que há mais indicações disso, são as indicações mais antigas.
Anteontem não ouvi ninguém comentar, mas nós comemoramos 509 anos da chegada dos europeus aqui, em terras brasileiras. E esses 509 anos parecem ser uma imensa peça trágica teatral, que se limitou no começo ¿ e não mudou muito ¿ a matar e a escravizar os índios e a saquear a terra, porque foi isso o que aconteceu no início da colonização: matamos. E veja que eu continuo colocando no plural: incluindo-me como parte desses portugueses, descendentes todos nós que somos deles, direta ou indiretamente. Nós nos dedicamos a arrancar pau-brasil e a matar índios; às vezes, matando-os fisicamente e, às vezes, matando-os pela conversão a uma religião que entrava forçosamente na alma deles, porque a religião deles era outra. Também é uma forma de canibalismo fazer certas conversões. Canibalismo não é só comer carne, como os índios comeram a de um bispo; canibalismo também tem na alma, quando um bispo converte, de uma maneira forçada, um grupo de outra religião.
E de lá para cá? De lá para cá, nós concentramos nossa história, durante 480 anos quase, a explorar, a matar, a saquear ¿ e não só os índios ¿ os negros africanos. Estava na cara, como se diz, que não iria dar certo uma economia com base na escravidão. Não dá certo eticamente, não dá certo moralmente, não dá certo nem economicamente manter todos aqueles milhões de escravos fora da economia, apenas como se fossem máquinas, sem consumir. O mercado é inaproveitado.
Um mercado inaproveitado. Não podia dar certo e não deu certo. Além disso, fizemos o mesmo, só que substituindo o pau-brasil, que a gente mandava para fora, pela cana, pelo algodão, pelo ouro, pelo café, mas uma economia baseada na exportação de bens primários, quando os outros países começavam a industrialização. Tinha que dar errado. Mas nós do passado brasileiros, nós dirigentes no passado brasileiros agimos como se fôssemos parte de uma tragédia predefinida, escrita por um dramaturgo como se nós não tivéssemos o poder de mudar o destino dos personagens. Porque é isso que caracteriza os atores. Eles não têm o poder de mudar o destino dos personagens, eles sofrem com aquele destino que vai acontecer, mas eles dizem todas palavras, eles colocam toda a poesia que um dramaturgo escreveu.
Essa é a sensação que tenho hoje como político. Que eu estou dizendo as palavras que foram traçadas para serem ditas, fazendo aquilo que fomos traçados para fazer, como se não tivéssemos o poder de mudar a história porque a história é uma peça de teatro. Essa é a sensação que tenho. E chegamos hoje aonde nessa peça? Chegamos hoje a um País que tem 14 milhões de analfabetos adultos. Chegamos a uma tragédia. Quem não percebe? Chegamos a um País que está em guerra civil e a gente parece que não percebe. Chegamos a um País onde apenas um terço das crianças terminam o segundo grau e sem qualidade suficiente para enfrentar o mundo de hoje, como o próprio Senador Paim falou mais cedo ao insistir na criação de um fundo para a escola do ensino técnico.
Chegamos a um País em que, 500 anos depois, comemoramos anteontem, continua-se exportando basicamente ferro e soja, agricultura e pedras, como fizemos no passado. E aí alguns dizem: mas já exportamos automóveis e aviões. Automóveis e aviões que são importados, especialmente os automóveis, sem nenhuma contribuição, quase, científica e tecnológica brasileira. E aviões que têm, sim, uma pequena contribuição. Tem, não há dúvida, graças a uma escola chamada Instituto Tecnológico da Aeronáutica. Mas, mesmo assim, nos nossos aviões, dentro deles, há um alto conteúdo de saber, inteligência e conhecimento importados, não inventados aqui dentro.
Continuamos um País cuja tragédia está em não sermos um criador de conhecimento, não sermos um criador de inteligência. Não temos um único Prêmio Nobel neste País e não há nenhum de nós que esteja por aí, no mundo científico, cultural, que dê a impressão que vá ganhar o Nobel nos próximos 20 ou 30 anos. Pode até ser, de repente, mas, aparentemente, o Brasil não vai ganhar nenhum Prêmio Nobel nos próximos 20 ou 30 anos, porque, em geral, sabemos, décadas antes, quais são aqueles que poderão ganhar um Nobel como grande reconhecimento mundial do seu saber. Não temos hoje. Temos cientistas, temos filósofos, temos escritores, mas, aparentemente, nenhum que nas próximas décadas possa-se dizer: este é o nome que vai receber o coroamento do conhecimento mundial. Podemos até ter, de repente, algum Prêmio Nobel da Paz, porque a paz, em geral, tem por causa a tragédia. Os Prêmios Nobel da Paz acontecem por causa das guerras, por causa da miséria, por causa da destruição ecológica. Não por causa do saber, não por causa da inteligência, não por causa da ciência e da tecnologia.
Estamos vivendo uma grande tragédia nesse imenso palco de 8,5 milhões de Km², com quase 200 milhões de atores, porque eu falei primeiro daqueles que são os responsáveis: nós, Parlamentares, Poder Executivo e Poder Judiciário. Vamos analisar também. Todo o Poder Judiciário, todo o Poder Legislativo e todo o Poder Executivo saem do povo, especialmente o Executivo e o Legislativo, que são eleitos pelo povo. Então, o povo faz parte também dessa imensa tragédia. E esse povo já demonstrou, mais até do que nós, que, quando é preciso, ele consegue mudar o rumo da história. Eles fizeram isso em 1945, quando foram para a rua a fim de trazer de volta a democracia. Eles fizeram isso quando foram para a rua para criar a Petrobras. Eles foram para a rua pelas eleições diretas. Não foram para a rua, mas desligaram o interruptor naquela grande tragédia do apagão elétrico que nós vivemos. O povo colaborou. O povo até que, de vez em quando, dá uma virada na História deste País, muda a tragédia que foi definida por cima, como se fôssemos impotentes, como se a História não fosse a História, como se a História fosse uma peça de teatro escrita previamente e dando a cada um de nós a responsabilidade de cumprir o nosso papel, sem poder, sem imaginação, apenas com a capacidade de representar aquilo que outros querem dizer pelas nossas bocas.
Fizemos 509 anos dois dias atrás. E fizemos em um processo que não tem essas diferenças todas, quando vemos a desigualdade, quando vemos as características da nossa sociedade. Claro que não é mais todo negro escravo, mas a maioria deles fora de uma escola de qualidade e poucos na universidade. Não houve grandes saltos. Claro que a escola hoje não é mais apenas para os filhos dos ricos; existem escolas para os filhos dos pobres, mas que não podem ser chamadas, com clareza, de escola, porque muitas delas não passam de restaurantes mirins para distribuir a merenda escolar e não para que se estude nelas.
É tão claro que não mudamos; que o projeto que está circulando neste Congresso para que os filhos dos Parlamentares, Deputados, Vereadores, Senadores e Prefeitos devam estudar em escola pública é visto como se fosse uma demagogia, como se fosse uma impossibilidade.
Da mesma maneira que neste País da tragédia, no sentido, não da maldade, da ruindade, mas no sentido da impotência em mudar o seu rumo, neste mesmo País, não faz muito, falar em abolir a escravidão era considerado demagogia, porque mesmo aqueles, Senador Paim, que defendiam os escravos, eles não defendiam a abolição. Mesmo aqueles que defendiam os escravos, eles defendiam menos chicotadas, eles defendiam que os escravos não pudessem ser assassinados, inclusive, chegaram a defender que a família não poderia ser vendida separadamente, tinha que ser vendida em bloco. Chegaram a defender que, passados 60 anos, eles ficariam livres, porque já não podiam trabalhar. Chegaram a defender que o filho da escrava não seria escravo, mas não defendiam a Abolição da Escravatura, porque isso era considerado impossível, porque isso era considerado uma impossibilidade, porque isso era considerado ferir o direito do dono do escravo, que tinha gasto um dinheirão para comprar os seus escravos e, de repente, ao abolir a escravidão, isso faria com que perdesse todo o seu capital. Era considerado demagogia, era considerado impossibilidade, era considerado falta de liberdade dar liberdade aos escravos. Dar liberdade aos escravos era considerado tirar liberdade dos donos dos escravos. Essa era uma tragédia, mas todos colaboravam para isso, até que de vez em quando surgia uma voz que mudava, como surgiu Joaquim Nabuco, que passou a defender a abolição e foi visto como um demagogo durante anos e anos, até que terminou acontecendo.
Quase que por inanição a escravidão se acabou, porque já não se justificava ter que comprar escravos, já que havia muita gente querendo se vender por um salário de nada. Para que gastar dinheiro trazendo escravos de longe se eles moravam por perto? Como hoje, para que buscar um trabalhador na África, escravo, se nas favelas eles estão dispostos a trabalhar por qualquer valor? Nós passamos a ideia, o nosso Brasil, de que não somos um País com uma história sobre a qual temos o poder, sobre a qual podemos mudar de rumo. Nós passamos a ideia de que somos 200 milhões de atores de uma tragédia previamente escrita e que nosso papel é cumprir o que essa tragédia já tem predeterminada por um dramaturgo qualquer que não sabemos quem é.
Está na hora de pensarmos em mudar isso. Está na hora de assumirmos que somos cidadãos, não atores. Nós somos cidadãos de uma história, nem atores de uma peça teatral, e que nós queremos que essa história traga um País melhor e não um final trágico, como aqueles que estão escritos previamente nas peças de teatro.
Para isso, vamos precisar mudar algumas coisas. Mas, antes de tentar sugerir essas mudanças, Senador Paim, passo a palavra ao Senador Mão Santa, que pediu um aparte.
O Sr. Mão Santa (PMDB ¿ PI) ¿ Senador Cristovam, V. Exª faz um feliz discurso, sempre com muita cultura. Às vezes, é como diz o Antoine Exupéry: a linguagem é fonte de desentendimento. Mas V. Exª, hoje ¿ a felicidade foi tão grande ¿, vai buscar a tragédia grega e citou Shakespeare, quando ele disse no Rei Lear: ¿Há algo de podre no Reino da Dinamarca¿. E me impressionou mais quando ele foi adiante e disse: ¿É melhor ser um mendigo em Nápoles do que Rei da Dinamarca¿. Paim, eu fiquei tão perplexo que, na Itália, eu fui conhecer essa Nápoles. E, realmente, a natureza foi Deus que fez, mas a cultura é o homem. E o que é que tem em Nápoles? Nápoles é aquela elite do Renascimento: Maquiavel, Dante Alighieri, Leonardo da Vinci. Todos moraram e nasceram ali; conviveram, viram a cultura, e mudaram o mundo. De lá veio o Renascimento. Mas V. Exª adverte com tanta firmeza o que nós vivemos ¿ essa tragédia ¿ e culturalmente, porque a natureza é Deus, a cultura somos nós. V. Exª fala em Prêmio Nobel da Paz. Quer dizer, a gente fica perplexo, porque não tem Nobel de nada no Brasil. Bem aí no Chile têm dois escritores: Uma mulher, Gabriela Mistral, cujos escritos são mais de cunho religioso, e o Pablo Neruda, que foi Senador da República. Então, nós temos muito a dever. Mas é aqui, aqui, aqui. Essas instituições que têm que vir. O Pedro II dava o ensinamento. Ele deixava a coroa e o cetro e ia assistir às sessões do Senado. Então, o mundo é outro. Vamos ver se os nossos, os outros Poderes, o Executivo de Sua Excelência o nosso Presidente Luiz Inácio, tomam conhecimento do seu discurso. E o outro Poder, o Judiciário, também. É com a grandeza da democracia que nós estamos a sonhar. Martin Luther King tinha um sonho... Que sejam equipotentes, um controlando o outro, um iluminando o outro. E, neste momento, você ilumina o Poder Executivo e o Poder Judiciário.
O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT ¿ DF) ¿ Muito obrigado, Senador Mão Santa.
E não deixei de falar que a mídia precisa descobrir o outro lado dessa tragédia, que é o lado do poder da gente de mudar as coisas, que é o lado do que está sendo feito de bom no dia a dia.
Nós vivemos um momento em que, aparentemente, ninguém quer se sentir capaz de reorientar os destinos da Nação.
E eu quero até concluir, Senador Paim, lembrando que me preocupa até mesmo o debate que virá no próximo ano para escolher o próximo Presidente ou Presidenta da República. A sensação que eu tenho é de que vai ser o mais chato de todos os debates da História do Brasil. Vai ser o mais monótono de todos os debates da História do Brasil, porque vão se comportar não como se fossem líderes para reorientar a História do Brasil. Eles vão se concentrar como se fossem os diretores da peça da tragédia, como se já tivesse tudo prescrito, apenas eles vão fazer mais projetos de infraestrutura, apenas eles viriam ou irão fazer um pouco mais ou menos, mas para cumprir o mesmo destino, destino que está prescrito numa frase que se diz no Brasil, como se fosse um orgulho: o País do futuro.

Que País do futuro? A gente quer um País que construa um futuro, um País cujo presente está a construção do futuro; e não um País cujo futuro virá automaticamente, como nas peças gregas, como nas peças teatrais das tragédias a que nós assistimos.

O Hamlet, que o Senador citou, não queria aparentemente, mas ele foi programado pelo dramaturgo para vingar a morte do pai, e ele fez tudo o que foi preciso para cumprir isso.
Em cada peça de teatro que a gente vê, os personagens fazem tudo que o dramaturgo escreveu. Agora, num país, a gente não pode fazer aquilo que foi escrito, porque não foi escrito. Está para ser escrito. Por isso, não é peça de teatro, é História do Brasil.
Nós precisamos dar um grito de independência e deixarmos de ser personagens de uma tragédia e virarmos personagens de uma história, história com ¿h¿, história feita, história construída.
Mas, para isso, é preciso despertar. É preciso despertar cada um da gente do poder que a gente não sabe que tem, do poder que a gente acha que não tem, e termina se divertindo. Os Parlamentares nos divertimos fazendo essa encenação teatral; o Poder Executivo se diverte mostrando uma publicidade de uma encenação de realizações; o Poder Judiciário faz uma encenação de que há justiça. E a mídia divulga pura encenação, não penetra, não analisa, e a gente fica, cada um de nós, convivendo, sofrendo, nessa relação que eu disse sadomasoquista, mas sem querer dar o grito de que nós somos os condutores da história do País. Nós não somos personagens impotentes. Nós não estamos aqui apenas para dizer o que o dramaturgo escreveu. Nós estamos aqui para dizer aquilo que o País precisa fazer, é nós sabemos o que é. Nós sabemos que é preciso pormos juntos Executivo, Judiciário e a mídia. Bastaria dizer que a gente estaria cumprindo o nosso papel, para, mais uma vez, fazer aquilo que, em poucos momentos, nós fizemos, como em 1822, quando da luta de um país colônia, que queria ser independente, e saiu independente. Em 1889, quando um país monárquico e um republicano, e saiu o republicano. Como em 1930, um país agrícola exportador, e surgiu um país industrial. Outra vez nós precisamos fazer uma inflexão na história, dobrar a história, conduzir a história e transformar este País, de uma sociedade brutalmente desigual, como foi durante a escravidão, brutalmente depredador da natureza, como fomos toda a nossa história, preferindo o trabalho manual ao trabalho da inteligência, preferindo produzir bens materiais a produzir bens vindos da ciência e da tecnologia...

Nós precisamos pegar esse país velho da indústria puramente mecânica, depredadora e concentradora e daí fazer surgir um novo país, um novo país da indústria do conhecimento, respeitando o meio ambiente, distribuindo os produtos que nós temos aqui, tudo isso democraticamente e com a participação de todos, da mídia denunciando tudo de errado que existir e propondo um debate sobre tudo de novo que ainda não existe, do povo votando corretamente e indo para a rua quando for preciso para exigir os seus direitos e a construção de um país melhor.

E nós Parlamentares, não dando margem a tantas notícias ruins, pois nos transformamos em verdadeira fábrica de notícias negativas sobre o Congresso. E, ao mesmo tempo, mais do que isto: nos transformando em condutores deste País, não atores de uma peça predeterminada, mas autores de uma história ainda a ser construída.

Eu vim aqui querendo comemorar os 509 anos em que aqui chegaram os portugueses e eu gostaria de poder dizer que, junto com os índios, e, depois, junto com os africanos, construíram este País. Mas não foi assim. Chegaram aqui os portugueses e, contra os índios e contra os africanos e destruindo a natureza, fizeram este País que a gente tem hoje, que parece o resultado de uma grande tragédia.
Está em tempo, porque o País é eterno, sempre haverá tempo, mas o triste é que a gente deixe passar pelas mãos da gente a chance de ainda em nossa vida nos transformarmos, de atores, em autores, transformarmos uma peça teatral em uma história nacional.
Ainda é tempo de este Congresso assumir esse papel.
Ainda é tempo de nós, que somos a Casa do povo, exigirmos isso do Executivo e do Judiciário. E ainda é tempo de que o nosso comportamento termine por inspirar a mídia, para que ela continue sendo a denunciadora, mas também a incendiadora, a incendiadora de um novo país, a incendiadora das ideias que iluminarão o novo país.
Hoje, ela não está sendo isso. Hoje, ela está sendo, corretamente ¿ e não temos de reclamar de nada do que ela escreve ¿, apenas a denunciadora, que é um papel importante da mídia. Ela tem de ser a incendiadora no sentido de iluminar, por meio dos debates que ela transmite, das ideias que ela não está descobrindo e que existem; ela tem que iluminar um Brasil diferente, um Brasil em que os atores se transformem em autores, em que as tragédias se transformem na glória, um país onde a peça se transforme em história.
É isso, Sr. Presidente Paim, que eu gostaria de dizer nesta manhã de sexta-feira, sem muitas ilusões de que vou deixar de ser um ator para ser um autor. Não tenho essas ilusões mais, talvez pela idade, mas tenho a grande esperança de, quem sabe, alguém com menos de 15 anos que tenha hoje escutado o que eu falei possa despertar e dizer ¿eu não quero ser apenas ator da grande peça Brasil; eu quero ser o autor da grande história que o Brasil poderá vir a ter, mas não terá automaticamente como muitos pensam¿.

Um comentário:

  1. Parabéns por divulgar um material de tão boa qualidade. Por um mero acaso assisti a este discurso na TV Senado. Realmente brilhante. O senador Buarque explicou de forma extremamente didática por quê a principal causa do atraso do Brasil é a deficiência da educação no Brasil. Ainda caminhamos na contra-mão, com a política de fabricação de diplomas, como se isso fosse suficiente para fazer as pessoas mais sabidas (como o Espantalho do Mágico de Oz). É interessante que a necessidade de uma sólida base escolar para assegurar a desenvolvimente de uma nação é uma obviedade no primeiro mundo, inclusive os recém-chegados, com Coréia do Sul. Mas aqui isso soa como um sonho utópico, impossível de ser realizado. A acessoria dele vai me mandar o dvd do discurso, que tratarei de divulgar entre meus alunos.
    Fernando
    fernandodeeke@gmail.com

    ResponderExcluir

Obrigado por comentar !! Volte sempre e comente mais !!! rs

.

Wikipedia Affiliate Button